terça-feira, dezembro 21, 2004

ai que medo...


Tenho ideia de termo morado em, pelo menos, três casas, sendo que a última era num bairro de habitação social (Fundo de Fomento da Habitação?). Esta casa ficava num prédio duma comprida rua e apenas tinha pela frente o imenso terreiro onde faziam a Feira do Gado, e lá ao longe, as faldas da Serra do Marão, a marcarem o horizonte.
Foi nesta casa que aconteceu:

Estou sozinho na varanda da nossa casa. Debruço-me e olho lá para baixo. Vejo a parede branca do prédio e o chão lá em baixo. Entretanto apercebo-me de um vulto escuro que amarinha pela parede acima. É difícil identificar o que é. Mas trata-se de um ser enorme, escuro e peludo. Quando ele está prestes a atingir a beira da varanda consigo finalmente identificar o que é. E o terror quase que me paralisa. É um lobo gigantesco, de pêlo negro e grandes garras, com uma cabeça enorme e uma grande bocarra escancarada, vermelha de sangue, da qual saem enormes presas afiadas como punhais, que me fita com uns olhos rubros e assassinos. Um calafrio percorre-me o corpo e sinto-me incapaz de me mover mas minhas pernas resolvem obedecer, comandadas por uma força cuja origem desconheço, e corro para o interior de casa, para a sala de jantar, no centro da qual está a mesa Queen Anne rodeada pelas cadeiras e o cadeirão de braços do pai. Corro como um louco, como um possesso, à volta da mesa. Olho para trás e vejo o lobo que entrara também e que , em pé, ruge e corre atrás de mim. Sei o que ele quer. Já ouvi muitas histórias destas, como a do pastor que andava a apascentar no Marão, ali à volta da cidade, e de quem só encontraram os pés dentro das botas, porque o resto tinha sido tudo devorado pelos lobos. Não quero que me aconteça o mesmo, ainda por cima dentro de casa, e por isso aumento a velocidade das minhas curtas perninhas. Mas o lobo é muito rápido e corre muito mais do que eu. Sinto já o seu bafo quente no meu pescoço. E de súbito abro os olhos, que estavam fechados não sei porque carga de água. Estou deitado na minha cama e ali, mesmo à minha frente, aos pés da cama, está o enorme vulto escuro do lobo. Começo a gritar e só paro quando o vulto se acerca de mim e sinto a mão da minha mãe na minha cabeça para me confortar e acalmar. Diz-me que eu estava a sonhar. Custa-me a acreditar, mas... enfim, a mãe é quem sabe. Nunca mais vi o lobo. Ah e, já agora, não tenho medo nenhum de lobos!

segunda-feira, dezembro 20, 2004

a habitual razão de ser...


Não recordo o dia em que cheguei a esta maravilhosa e medieval urbe serrana.
Não seria possível recordá-lo pois nasci a 26 de Fevereiro de 1957 em Benfica (Lisboa), e segundo o meu pai, ele 'assentou praça' no Banco Nacional Ultramarino, em Vila Real, no dia 30 de Março de 1958, e nós (eu e a minha mãe) viemos cerca de 2 meses depois, após ele se ter instalado e ter conseguido arranjar uma casa para vivermos (numa quinta na Timpeira). Assim, eu terei chegado a Vila Real com 15 meses de idade.
Como fomos para Alcácer do Sal por volta de 1963, já depois do nascimento da minha irmã Tensinha (1959, Lisboa) e do meu irmão Julinho (1962, Vila Real; o único genuíno transmontano da família...), vivi nesta cidade cerca de 6 anos.
Ora estes 6 anos já são tempo suficiente para algumas memórias. Memórias um tanto ou quanto remotas e difusas, mas mesmo assim vincadamente marcantes do meu ser e do meu carácter.

Como eu me lembro:

Do manto da nívea e fria neve a cobrir as ruas, os telhados, as encostas do Marão, visíveis das nossas janelas!
Da água gelada nas canalizações, torneiras que não vertiam pingos, e a Tensinha a gemer "ai as minhas mãozinhas"!
Da família sentada à volta da braseira à noite, para combater as temperaturas negativas, e os pés quase enfiados dentro dos carvões em brasa rubra, que a sola das botas até escaldava!
Dos passeios ao serão à volta do quarteirão, em noites mais cálidas, a deitar abaixo os bonecos de neve que tinhamos feito durante o dia!
Da Feira de Gado, no largo fronteiro à nossa terceira casa, das moscas, do intenso cheiro a merda e daqueles animais de cornos gigantescos em forma de lira que arruavam num lamento de ausência de terra agreste e penedias!
Das ruas atapetadas por uma passadeira de flores multicolores a figurarem imagens de santas e santos, gente boa, feita por laboriosas mulheres de corpos grossos e grandes mamas, que os pés processionais e o peso dos andores destruíam sem apelo nem agravo!
Dos Gigantones (sob os quais eu divisava as botifarras que calçavam os pés dos homens que os transportavam), mostrengos de compridas saias e grandes cabeçorras, com sorrisos estúpidos nas trombas, bailando ao som das gaitas e dos bombos, descendo pela calçada como ébrios numa orgia elegíaca de Baco de braço dado com Diónisos!
Da nossa segunda casa, junto à estação de comboios, onde para tomarmos banho usávamos uma selha estrategicamente colocada no meio do hall de entrada ao cimo das escadas, cheia de água quentinha que a mãe trazia da cozinha, aquecida em tachos e panelas sobre o fogão!
Do Colégio de São José, onde as freiras me ensinaram as primeiras letras, e um homem, que não sei quem era, vestido de fato cinzento, me repreendeu porque eu estava a fazer bonecos na folha em que devia estar a fazer o trabalho que me era exigido!
Das corridas de automóveis, monstros metálicos urrantes cuspidores de fogo e fumo, que assustavam os animais da quinta e os animais da cidade, e que eu via passar debruçado no muro!
Das corridas de kart à volta do jardim da cidade, e do kart que perdeu uma roda ao fazer uma curva, e do veio a fazer faísca no empedrado de granito que até parecia fogo de artifício, mas que grande espectáculo!
De comer o mel, alimento de deuses, directamente dum pedaço de favo numa ida à herdade dum amigo do meu pai!
Dos banhos na minúscula e pedregosa mas bela e aprazível praia fluvia sob a vetusta ponte!

Tantas memórias!
A maior parte são imagens quase fotográficas, sem nome. Mas sobre elas é ainda possível dizer alguma coisa. Pelo menos sobre os sentimentos e as emoções que lhes estão associados.
E esse é o motivo que me leva a 'abrir este livro', este blog. Quero deixar aqui registadas algumas coisas de que me lembro daquele tempo fantástico que foi a minha vida em Vila Real. Afinal, daquele tempo que foi, no fundo, praticamente o começo da minha vida.
Não coloco nenhuma ordem especial nas prosas que aqui vou deixar. Colocá-las-ei à medida que me for lembrando de algo e as for produzindo. Dentro do que me for possível, procurarei datar com a máxima precisão, e tentarei nomear pessoas e lugares. Mas esse esforço parece difícil, pois conto apenas com a minha memória e esta é cada vez mais vaga.

Vamos a isto!